OCUPANDO O LATIFÚNDIO ELETROMAGNÉTICO

Rádios bolivianas em SP unem comunidade e se ocultam para driblar fiscalização

Continuando as nossas andanças e buscas pela rede, nos enviaram esse interessante texto de final de 2007 — publicado originalmente na página de notícas do Portal UOL. Mesmo não concordando com um certo viés de ilegalidade e criminalização que perpassa a terminologia usada pelo repórter no início de seu artigo, a descrição das relações de sociabilidade forjada e reforçada pelas atividades da comunidade boliviana de São Paulo é extremamente rica  — e evidencia a importância cultural e política das rádios livres, piratas e comunitárias. Chega de introdução por aqui — já que nossa ideia é que vocês leiam a reportagem, debatam entre si e conosco aí nos comentários ou nas suas próprias (e nossas…) rádios livres.

E, para terminar mesmo esse papo inicial, já que o autor chama a atenção para a forte migração boliviana e seu engajamento nas atividades têxteis (sofrendo, na maioria das vezes, com as péssimas condições de trabalho e remuneração), fica a sugestão final — para quem quiser entender mais sobre o assunto e conferir a participação das multinacionais de roupa nesse processo — para que vocês leiam o artigo Tramas da exploração: migração boliviana em São Paulo, de Bruno Miranda e Taiguara (publicado originalmente no site do Coletivo Passa Palavra).

***

Rodrigo Bertolotto
Em São Paulo

As rádios piratas são tão escondidas como as oficinas de costura. A oculta comunidade boliviana em São Paulo se refugia diante de fios e agulhas em jornadas de 17 horas, seis dias por semana (só no domingo eles são vistos nas ruas centrais). A concentração deixa só os ouvidos livres da tensão para não errar e ganhar R$ 1,50 por peça finalizada.

“Meteoro FM, 107.5, porque somos la diferencia en su sintonia en la capital paulista”, retumba o slogan da estação de maior alcance, ouvida até na região da avenida Paulista e irradiando desde o Bom Retiro. No total, são quatro rádios levando notícias, música, novelas, anúncios, programas esportivos e palavras de consolo em espanhol para os mais de 100 mil imigrantes.

Clandestinamente, as antenas, os estúdios e o lugar no dial se instalaram na vida da cidade, mas desaparecem de tempos em tempos para driblar a fiscalização.

A mais antiga em funcionamento, a Infinita FM (106.7) saiu do ar na última semana, justamente quando voltou a ser sintonizada a rádio Galáctica (105.5). “Vocês estavam desaparecidos”, brincou ao vivo a ouvinte Silvia, da oficina Los Leones de Penha, que telefonou para a estação para pedir que tocassem sua cumbia preferida da banda Los Culpables. “Sim, tivemos uns probleminhas, mas 2008 vai ser bem melhor”, respondeu o locutor Lobito. Há ainda a FM Melodia, captada apenas na Casa Verde e cercanias.

 Com endereço em uma rua movimentada do bairro comercial do Brás, a Infinita FM tem sede em um prédio decadente de seis andares, com sua antena de cinco metros postada no alto. Por lá, detrás de cada porta sai o barulho das máquinas. O elevador virou de carga, afinal, as sacolas com roupa são as principais usuárias dele. Só uma das portas oculta o estúdio onde Andrés Espinoza apresenta de manhã seu programa com as novidades do futebol boliviano.

Espinoza é quem leva à frente a campanha para sair da condição de pirata e virar uma rádio comunitária. Capitaneados pelo grupo Oboré, 117 estações paulistanas estão tentando a legalização junto ao Ministério das Comunicações.

A Infinita é a única nessa lista que serve a comunidade boliviana. “Os radialistas bolivianos nos procuraram. Nós ajudamos, mas o contato é ocasional”, conta Cristina Cavalcanti, coordenadora do Oboré. Por medo dos fiscais, os comunicadores são arredios. A reportagem do UOL entrou em contato com três deles, mas eles se recusaram a dar entrevista ou faltaram aos encontros combinados por telefone celular, que passaram a não responder mais.

Se homologada, a rádio Infinita teria um raio de cobertura de um quilômetro nos bairros Pari e Brás. E as publicidades, que hoje ocupam boa parte de sua programação, seriam bastante limitadas: só empresas com sede na área de cobertura e sem divulgar preços e endereços (só apoio cultural).

Os anúncios são a forma com que essas rádios se sustentam atualmente. E eles vão de simples classificados a vinhetas bem elaboradas. A oferta de máquinas de costura é a campeã. Mas tem também propaganda de um dentista boliviano com consultório na rua Celso Garcia: “Una linda sonrisa abre corazones.” Outro reclame traz o diálogo de um mulher tentando acordar seu marido que resiste em ir costurar e dorme um pouco mais “no colchão macio e lindo” da loja X do Bom Retiro.

Há também quem ofereça emprego, como Juan Carlos anunciando “trabajo bico” com o “salário altíssimo de R$ 700” – o locutor termina apelando para que o ouvinte “avise seus amigos desamparados”. Outros procuram casa na região do Belenzinho para instalar oficina ou oferecem apartamento em Cochabamba (ótimo investimento “en nuestra amada patria”).

Os restaurantes típicos, as “peluquerias” especializadas nos cortes mais populares de cabelo e as lojas de aviamentos são a base dos patrocinadores das rádios. Alguns informes publicitários esclarecem que, para o estabelecimento atender, o cliente deve “tocar al timbre” (apertar a campainha), ou seja, também as lojas são encobertas.

A maioria dos estabelecimentos está na rua Coimbra, no Brás, epicentro dos andinos. Lá estão o restaurantes El Campeón (“El mejor frango a la brasa de São Paulo”) e o já tradicional Illimani, cujo dono, Jorge Merubia, é uma espécie de embaixador dos imigrantes e promotor da feira típica na praça Kantuta. É lá que as ouvintes depositam cartas que serão lidas no programa “Caminando En La Tarde”. São histórias de amor, separação, pobreza e sacrifício, dando uma versão melodramática para a migração.

As rádios também servem para unir esses estrangeiros. Na Meteoro, o locutor Efrain Garcia convocou os ouvintes a participarem de ato pela anistia dos indocumentados na praça da Sé. “Se você for jogar futebol no domingo e não participar, vai prejudicar todos seus compatriotas”, advertia no ar, pedindo para seus ouvintes evitarem pelo menos em um fim-de-semana o divertimento preferido.

Em outros momentos, o rádio ajuda a localizar familiares ou amigos espalhados em outras oficinas. Como o setor de confecção vive uma estiagem entre os meses de janeiro e dezembro (a moda de verão já foi entregue e a de inverno só começa em março), muitos bolivianos voltam para o Altiplano de férias. Recados na rádio são do tipo “Ramiro procura sua irmã Adriana porque está de viagem marcada para La Paz.”

As rádios também falam de medicina. Por um lado, alertam para o perigo da tuberculose, que teve surto entre a comunidade devido ao trabalho e hospedagem em ambientes fechados e sem ventilação. Por outro, oferece ungüentos e pomadas para dores de coluna e cãibras, corriqueiras para quem fica dias e dias sentado trabalhando.

A maioria dos imigrantes bolivianos (87%) tem entre 20 e 24 anos e baixo nível de instrução. Ficam no Brasil um ou dois anos no sacrifício para voltar para seu país. Eles preferem ouvir o pop latino, com muita salsa, cumbia villera e reggaeton (ritmo dos porto-riquenhos de Nova York, com influência do rap). Pouco se escuta a típica música andina.

Também não se ouve o rap de Abraham Bojorquez, que influenciado por sua temporada em Artur Alvim, bairro da Zona Leste paulista, adaptou a música de protesto do grupo Racionais MC para contar a realidade dos mais pobres do Altiplano, a base eleitoral do presidente Evo Morales.

Quando ligam para pedir uma música, os ouvintes aproveitam para mandar saudações para os amigos de outras oficinas, com nomes como Los Tigres de Vila Maria, Me Voy O Me Quedo ou Los Noveleros. Também tem os “saludos para mi jefe” (o chefe conterrâneo que comanda a oficina, que fique claro, não o contratista coreano que faz as encomendas e estabelece prazos curtos e pagamentos precários).

Por seu lado, os locutores pedem para que eles mandem abraços em quéchua e aimará, línguas indígenas faladas por lá. E também dizem palavras de incentivo (“feliz jornada de trabalho” ou o chavão “o trabalho faz o homem”).

Tanto a Meteoro com a Infinita adotaram seus nomes de rádios já existentes na Bolívia, respectivamente, de Santa Cruz De La Sierra e La Paz. Apesar da religião predominante na Bolívia ser a católica, com resquícios da crença autóctone na pachamama (a deusa terra), as duas rádios têm programas no horário do almoço professando a fé neopentecostal, com direito a “denunciar” a influência demoníaca do Natal.

***

(As fotos presentes no corpo desse artigo foram retiradas do mesmo site no qual a reportagem original foi publicada).

Comments are closed.