Rádios Livres Brasil — Breve História (2ª parte)
A Rádio Várzea acredita que história é luta e que um dos nossos papéis é, justamente, escrevermos a própria narrativa de nossa complexa, difícil e feliz trajetória coletiva de criação, experimentação e militância. Eis, então, uma breve visão histórica, escrita por Rodney Brocanelli, sobre a atuação das rádios livres no Brasil. Essa é a segunda parte deste artigo. A primeira parte aqui está.
Nunca é demais lembrar que, como já dissemos aqui sobre a história das rádios livres europeias, uma das melhores formas de continuarmos a renovação, crítica e superadora, de um movimento autônomo passa pelo conhecimento de sua história de luta e debates. Eis aí, portanto, uma parte dessa tarefa coletiva.
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As emissoras que foram sendo colocadas no ar depois de março de 1994 apresentavam um perfil diferente das que vieram antes. A saber: rádios com projetos comerciais e rádios ligadas a grupos religiosos.
Curioso notar que a Reversão, uma emissora anarquista foi quem possibilitou a proliferação de rádios com fins lucrativos. As rádios com caráter comercial surgiram a reboque da absolvição de Léo Tomaz. Não possuem base ideológica. A filosofia dessas novas emissoras é ganhar dinheiro.
Vendem anúncios aos comerciantes do bairro e horário de programação. Um programa de duas horas pode chegar a custar ao bolso do apresentador de R$ 200,00 a R$ 400,00.
A programação musical não difere muito das rádios FMs comerciais.
Dentro do movimento de rádios livres, as rádios que possuem uma filosofia comercial não são bem-vistas. Porém, existe uma resposta na ponta da língua aos que criticam essa prática:
“Tem anúncios sim, senão, como é que eu vou viver, como vou comer?”, é o que disse Valmir Ribeiro Torres, dono da Rádio Nova Geração em entrevista a jornalista Marisa Meliani.
Para algumas pessoas que militam há mais tempo no movimento, emissoras como a de Valmir colaboram para que exista um preconceito vindo por parte dos formadores de opinião. Além disso, a venda de horários e espaço comercial é munição certa para os inimigos das rádios livres, leia-se rádios oficiais. Nenhuma dessas emissoras com caráter comercial está devidamente registrada. Não pagam impostos e enc argos trabalhistas. Aliás, nem é necessário muito esforço para não pagar as obrigações trabalhistas. Os funcionários recrutados pelos “comerciais” são em geral gente desempregada, jovens locutores que saem de cursos de locução de fundo de quintal e veteranos locutores que já não tem mais espaço no rádio.
Outro tipo de rádio livre que proliferou no dial foram as de cunho religioso. A intenção é clara: difundir a “palavra de Deus”. são mantidas com apoio do comércio das regiões em que operam (leia-se comerciais).
Diferentemente das rádios de filosofia comercial, quando uma emissora evangélica vende anúncios o objetivo é investir em equipamentos de transmissão e melhora na propagação do sinal. O programa típico de uma rádio religiosa é o que mistura a pregação de um pastor no estúdio e hinos religiosos.
Alguns cultos são transmitidos diretamente dos templos. Uma das rádios que mais se destacou nesse setor foi a Free FM, situada no bairro da Vila Nova Cachoeirinha. Sua programação abre espaço para igrejas de variadas tendências como a Presbiteriana, a Batista, e a Assembléia de Deus e Deus é Amor.
Na Free é proibido vender anúncios e até pedir doações. Outro mantenedor de rádio evangélica é contundente nas críticas: “O negócio do Edir (Macedo) é ganhar dinheiro. A rádio livre não está preocupada com isso”, diz Paulo de Oliveira, que montou a Rádio Central FM.
As rádios evangélicas despertam dentro do movimento de rádios livres sentimentos diferentes. Alguns, claramente agnósticos, são contrários ao uso do rádio para pregar mensagens religiosas. Outros são mais tolerantes. Mas não se pode esquecer que se a luta das rádios livres é pela democracia na comunicação, todos devem ter acesso ao meio, independente de credo.
Na década de 90, as rádios universitárias também ganharam impulso. São rádios ligadas a universitários, não necessariamente ligadas a universidades, herdeiras da Xilik, rádio livre dos alunos e professores da PUC. Em geral, são rádios mantidas por alunos de universidades e/ou faculdades. Não contam com o apoio explícito das reitorias, mas estas fazem vista grossa para o trabalho dos alunos.
Entre as que mais se destacaram nesses anos 90, podemos citar a Rádio Muda e a Rádio Onze.
A Rádio Muda é mantida por alunos da Unicamp (Campinas) e opera a partir do campus da faculdade num local conhecido como “Pau do Zeferino” (caixa d’água próxima ao Teatro de Arena), e possui um transmissor provisório de 12W operando em FM a aproximadamente 105,7 MHz. A gestão da rádio é auto-gestiva, feita por um coletivo, formado por todos aqueles que veiculam programas. A base da programação é feita pelos alu nos, professores e funcionários da universidade. A Muda é uma das rádios que usa a Internet como meio de divulgar o seu ideal e a sua programação. Seu endereço eletrônico é http://www.fee.unicamp.br/~muda/
Outra rádio universitária que se destacou foi a Rádio Onze. Ligada ao Centro Acadêmico da Faculdade de Direito-USP, a rádio ultrapassou os limites do campus e virou referência para muitas outras emissoras. A trajetória da Onze é não-linear. Ela existe desde o ano de 1989, sempre sendo tocada pelos alunos da faculdade. Conforme alguns iam se formando e deixando a faculdade, outros v inham para tomar conta da emissora. Em 1993, a Onze ganha um novo impulso com a chegada de Rodrigo Lobo. No ano seguinte, ela passa a funcionar fora do âmbito da faculdade, operando a parir da Casa do Estudante, espécie de centro residencial universitário dos estudantes do Largo São Francisco, que fica na Av. São João, bem no centro de São Paulo. No dia 11 de agosto daquele ano, ela faz a sua inauguração oficial e conta como patrono o jurista G offredo da Silva Teles Jr., que redige um manifesto de apoio.
A Onze ia ao ar ainda de forma irregular. As transmissões constantes só começariam em 1995, com a chegada de novos integrantes. Ao contrário das outras rádios ligadas a universitários, a emissora abriu o seu microfone a comunidade do centro da cidade e com uma proposta arrojada: o próprio ouvinte poderia fazer o seu programa. Bastava trazer um projeto, que este era submetido a apreciação dos administradores da rádio. Sendo aprovado, era logo colocado no ar. Muitas vezes, o apelo para que as pessoas comuns fizessem parte do quadro de programadores da Onze era feito no ar.
No ano seguinte, a Rádio Onze se tornaria o centro das manchetes de jornal ao lançar a campanha “Maluf, deixe-nos dormir em paz”. O então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, manifestou o desejo de reabrir o elevado Costa e Silva (o Minhocão) ao trafego noturno. Só que ele se esqueceu das pessoas que moram nos prédios que ficam ao lado da via expressa. Iriam deixar de ter sossego a noite, o único período em que ficam livres do barulho dos automóveis e da poluição.
Uma vinheta que ia ao ar nos intervalos dos programas avisava aos ouvintes do engajamento da emissora na luta contra a idéia do prefeito. Vários programas especiais de debates foram feitos para analisar os prós e os contras da medida. Foram feitas manifestações com recolhimento de assinaturas dos moradores contrário ao projeto.
Todo o barulho feito gerou dividendos de imagem para a emissora. Diversas reportagens de jornais e TVs destacavam o papel da Onze na resistência dos moradores do Centro. Logo depois, o prefeito Paulo Maluf abririra mão da reabertura do Minhocão à noite.
O sucesso do Projeto Minhocão tornou a estação mais conhecida e abriu caminho para novas campanhas de interesse público. A mais recente campanha foi de prevenção e esclarecimento sobre a AIDS. O mote da campanha era “AIDS, responsabilidade de todos nós” e foi realizada em parceria com o GIPA (Grupo Independente de Prevenção a AIDS), uma organização não-governamental.
A Rádio Onze, a exemplo da Xilik e da Reversão, conseguiu usar a mídia para divulgar seus projetos e realizações. Uma façanha admirável, uma vez que nos anos 90 a grande imprensa reduziu o espaço para a temática das rádios livres.
Mas nem só de campanhas sociais viveu a Rádio Onze. A emissora abriu espaço para artistas em começo de carreira, que não tem chances de mostrar seu trabalho em outras rádios. Vários programas funcionaram como uma plataforma de lançamento. Mas o projeto mais audacioso na área musical se intitulou “Ao Ar Livre”. Eram shows de música ao vivo transmitidos direto do terraço do edifício onde ficava instalada a Onze, com a presença de público.
Além desse papel sociocultural, a Rádio Onze foi uma das únicas emissoras a se insurgir contra a campanha de desqualificação do movimento de rádios livres organizada pelas emissoras comerciais, o que será explicado a seguir.
As rádios livres, obviamente que se transformaram em um sucesso de público. Em parte, pelo que foi explicado acima, agregando a eles mais um fator: cada emissora falava para sua comunidade, abordava os problemas dos bairros e regiões atingidos pelas emissoras. Isso criou, naturalmente, a identificação com os ouvintes, que se “ouviam” no rádio, por assim dizer. Mesmo não sendo possível medir a audiência das rádios livre s, é certo que elas atrairam a atenção de uma fatia considerável de público.
As rádios oficiais ficaram assustadas com essa fuga dos ouvintes para as rádios livres. A saída não foi outra a não ser contra-atacar. No dia 22 de novembro de 1996, foi lançada a uma campanha organizada pela AESP (Associação das Emissoras de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo) e Sertesp (Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo). O principal apelo utilizado na campanha, segundo os seus organizadores, é a luta contra o risco de interferência que seria ocasionado pelas rádios livres no sistema de comunicação dos aeroportos, polícia e bombeiros. Vários spots foram veiculados durante a programação normal das rádios alertando para o que se considerava um “risco a sociedade”.
Do ponto de vista técnico, esse risco era possível sim, mas nos primórdios do movimento de rádios livres. Os transmissores não possuíam um componente fundamental para evitar a interferência chamado PLL.
Como se dá a interferência? Para explicar isso, é só imaginar a freqüência geral de rádio como uma linha reta. Numa seqüência, vem as faixas em AM, OC, OT, entre outras, não nessa ordem. A faixa do FM vem antes do espaço usado pelo sistema de comunicação dos aeroportos, polícia e bombeiros. Sem o componente PLL, o transmissor caseiro não ficava “travado” na mesma freqüência e pas seava por entre o dial do FM até chegar na faixa dos serviços públicos. Com o avanço tecnológico, os novos transmissores que vinham das fábricas caseiras, possuíam a placa de PLL, tornando seguras as emissores, sem provocar riscos. Até mesmo a ação da fiscalização, apreendendo emissoras, colaborou para a segurança das transmissões. Os que tiveram as emissoras fechadas, tinham que ir a luta para voltar ao ar e , naturalmente, tinham encomendavam um novo transmissor, mais moderno, logo de saída.
Muitos mantenedores de rádios livres, naturalmente, ficaram com medo. E com o natural desconhecimento técnico, poucos se dispuseram a de reagir. Foi aí que entrou a Rádio Onze, que lançou a campanha “Pirata é a Mãe”. Com vinhetas exibidas na programação e cartazes com o slogan colados nas principais ruas de São Paulo, a emissora foi uma das poucas que reagiram a essa perseguição. “Pirata é a Mãe” quebrou a barreira e ganhou espaço em jornais e TVs.
Outro aspecto que era muito discutido na questão das rádios livres era a lei. Muitos consideravam que essas emissões eram irregulares. Outros, não. A argumentação de quem defendia as rádios livres era embasada nas Garantias e Direitos Individuais como premia a Constituição de 1988 em seu artigo 5, inciso 9 e nos pactos que envolvem os países ocidentais como o Pacto de São José da Costa Rica do qual o Bra sil é signatário desde 1992. O artigo 13 do Pacto diz o seguinte:
“não se pode restringir o Direito de Expressão por vias ou meios indiretos tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüência radioelétrica ou de equipamentos ou aparelhos usados na difusão de informações, nem por quaisquer outro meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões”.
Com a crescente demanda de rádios livres sendo colocadas no ar, e as brechas que a lei concedia, não houve outra saída a não ser regulamentar esse tipo de radiodifusão. Parlamentares de diversas tendências ideológicas enviaram projetos de regulamentação. Um deles, apoiado por diversas entidades e associações que defendiam os interesses das emissoras livres é o de número 1521/96. No entanto, o ent&a tilde;o Ministro das Comunicações Sérgio Motta e o deputado Koyu Iha, relator da a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicações e Informática, apresentaram substitutivo que defendia os seguintes pontos:
1 – raio de ação de apenas 1 km; uma única freqüência em todo país (nos EUA são 12Km);
2 – potência máxima de apenas 25 Watts;
3 – exclui as rádios livres e as TVs;
4 – não inclui anistia às rádios já fechadas;
confere a ANATEL poderes para fechar as rádio, sem necessidade de decisão judicial
É claro que essa versão não agradou a ninguém, a não ser as emissoras comerciais. O projeto foi aprovado na Câmara Federal. Depois, foi para o Senado Federal e, depois de dois anos, foi aprovado. A tramitação desse projeto durou quase dois anos. O consenso geral era de que o projeto não era o ideal, apresentava falhas, mas pelo menos era alguma coisa, melhor que nada.
O projeto já foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) ficou encarregada de cuidar dos processos de concessão para a operação de rádios comunitárias ou RadCom (como ficou denominado esse tipo de radiodifusão).
Enquanto isso, a fiscalização continua fechando as rádios (agora perante a lei) irregulares. Na justiça, as coisas também não estão indo bem para os mantenedores de rádios livres.
Muitos processos estão terminando em condenação. Agora, existe uma infração a lei e não existe mais atenuantes.
O que vai acontecer com o movimento de rádios livres daqui por diante é uma incógnita. Quem se aventurar a colocar uma emissora no ar sem regulamentação talvez se inspire no que era feito nos anos 80: transmissões sem regularidade, com poucas horas de duração, e com um caráter anônimo.
As rádios livres com intenções comerciais vão deixar de existir aos poucos.
O senador Odacir Soares (PTB-RO) apresentou projeto que anistia quem operava rádios comunitárias em desacordo com as normas do Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962, extinguindo as centenas de processos movidos contra as pessoas e entidades que operavam emissoras comunitárias antes da aprovação, em fevereiro deste ano, da lei que regulamentou o serviço.
Por outro lado, a Agencia Nacional de Telecomunicações (ANATEL) ainda não expediu até hoje (nov.98) autorização para o funcionamento de qualquer rádio comunitária no país.
A história das rádios livres no Brasil continua sendo escrita.
Rodney Brocanelli
jornalista e um dos articuladores da Rádio XI
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